UMA VIAGEM NA ORIGEM DO ESPORTE PARALÍMPICO

por Rodrigo Rodrigues Gomes Costa (@souorr)
Doutorando em Ciências do Movimento e Reabilitação – UNIFESP
Prof. Ed. Física da Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação

Introdução

Recebi o grato de convite da Associação Brasileira de Rugby em Cadeira de Rodas (ABRC) de escrever sobre minha experiência em visitar Stoke Mandeville na Inglaterra, durante as minhas férias em maio de 2023. Pude conhecer o local onde surgiu o esporte paralímpico e compreender melhor como foi o desenvolvimento da reabilitação em pessoas com lesão medular, o papel do Dr. Guttman nesse processo e como o esporte paralímpico virou uma potência nascendo no interior da Inglaterra. Espero que percebam a minha alegria durante essa experiência nas próximas linhas.

A entrada do Stoke Mandeville Stadium

Contextualização geográfica

Começo então por contextualizar esse local chamado Stoke Mandeville e como ele se relaciona com o esporte paralímpico. Stoke Mandeville é uma village que poderíamos traduzir como vila, ou seja, uma pequena região com áreas urbanas e rurais. Essa aldeia está dentro de Buckinghamshire ou apenas Bucks que é um condado (em inglês, county), parecido com os nossos estados brasileiros, mas sem o poder tão amplo e autônomo. Essa contextualização foi importante para mim porque será importante distinguir dois lugares: Stoke Mandeville Hospital e Stoke Mandeville Stadium.

Stoke Mandeville Hospital

O primeiro local é uma das maiores unidades especializadas em lesão medular do mundo, localizado na cidade de Aylesbury (dentro da vila Stoke Mandeville e do condado Bucks). O hospital também atende outras especialidades como oftalmologia, maternidade e também urgência e emergência. A unidade especializada em lesão medular é o Centro Nacional de Lesão Medular do país (National Spinal Injuries Center). O hospital surgiu no início da década de 1830 para suprir uma demanda de epidemia de cólera que afetava a Inglaterra. Em setembro de 1943, o governo da época convida o médico alemão especialista em lesão medular, Dr. Ludwig Guttman, para implementar um centro nacional em lesão medular no hospital de Stoke Mandeville.

Um pouco da histórica

Para entender em que contexto histórico surgiu o centro de referência de lesão medular da Inglaterra, nada melhor do que o próprio Dr. Guttman para contar. Quem quiser se aprofundar, o texto está disponível na revista científica Spinal Cord que antigamente era chamada de Paraplegia.1 O artigo foi publicado dia 01 de novembro de 1967.

Ele narra o contexto de negligência da abordagem médica e de reabilitação em relação à lesão medular. Nas suas palavras, “a paraplegia e a tetraplegia traumática, ao longo dos séculos, é um dos temas mais reprimidos e negligenciados na medicina”. Segundo Dr. Guttman, mesmo nos estágios iniciais da Segunda Guerra Mundial, quando a concepção moderna de reabilitação incluía os amputados e outras deficiências incapacitantes, a lesão medular não era considerada.

Posso destacar dois momentos marcantes no surgimento do centro especialista em lesão medular. O primeiro ponto é o entendimento que a lesão medular demandava peculiaridades na reabilitação e a partir dessa compressão, foi quando a Grã-Bretanha decidiu congregar as pessoas com lesão medular em unidade de saúde específicas. Outro ponto, foi a necessidade da Grã-Bretanha em se preparar para uma segunda frente de combate da Segunda Guerra Mundial que estava por vir a qual acarretaria novas vítimas de lesão medular eram esperadas.

Assim, em 1º de fevereiro de 1944 é inaugurada a unidade de tratamento especial em lesão medular no Hospital do Ministério de Pensões de Stoke Mandeville. Segundo Dr. Guttman, inicia-se “uma nova era para as pessoas com lesão medular”. E para ser mais enfático, ele descreve de forma emocionante como será a proposta:

“(…) a ideia é fornecer para os pacientes paraplégicos e tetraplégicos de lesão medular um serviço abrangente desde o início de sua lesão e ao longo de todas as etapas resgatando esses homens e mulheres da lixeira humana e devolvê-los, apesar de sua profunda deficiência, à comunidade como cidadãos úteis e respeitados”.

Ao final do primeiro ano da nova proposta, em 1944, Dr. Guttman já fazia uma avaliação positiva da especificidade nos cuidados junto à lesão medular e cita o esporte:

“(…) o esporte regular e o trabalho foram introduzidos como partes essenciais no tratamento médico destes pacientes que, no devido tempo, se revelaram bem sucedidos para a reabilitação física, psicológica e social”.

Dessa forma, Dr. Guttman deixa claro o seu olhar sobre o papel extremamente importante do esporte na reabilitação.

O esporte na reabilitação até os Jogo de Stoke Mandeville

Um dos pontos importantes quando se faz essa investigação histórica é entender como as circunstâncias tornam-se uma linha em sequência ajudando na compreensão do todo. É como se as peças de um jogo de quebra-cabeça passassem a se encaixar.

O início vem de uma demanda reprimida na assistência da lesão medular, unida à um médico, que pelo seu conhecimento profundo dessa deficiência e suas peculiaridades, luta por um atendimento especializado. Com esse entendimento tão amplo dele, percebe-se a necessidade de uma abordagem diferenciada incluindo a prática do esporte nesse contexto. O uso do esporte faz parte da intervenção do hospital e com o envolvimento grande dos pacientes cria-se uma competição dentro dele. Essa competição cresce, chegando pessoas de outros países até tornar-se um evento mundial.

Nas palavras do Dr. Guttman:

“(…) as nossas atividades esportivas estão incluídas no tratamento médico e isto tem encorajado muitos pacientes a continuar a praticar esporte para o seu bem-estar físico e lazer após a alta hospitalar. O interesse e o entusiasmo pelo esporte competitivo aumentaram consideravelmente e, em 1948, os Jogos de Stoke Mandeville foram fundados como um movimento do esporte para deficientes físicos. Esses jogos, que inicialmente eram realizados anualmente como um evento nacional, desenvolveu-se e, desde 1952, é o primeiro festival esportivo anual organizado para pessoas com deficiência grave no mundo”.

Ou seja, em 1948, inicia-se os Jogos de Stoke Mandeville de forma anual. Em 1952, tona-se um evento internacional, com a primeira participação de estrangeiros, no caso holandeses. Em 1956, durante os Jogos Olímpicos de Melbourne, o Comitê Olímpico Internacional concede um prêmio à organização dos Jogos de Stoke Mandeville pelas conquistas excepcionais no serviço de divulgação da ideia olímpica. E em 1960, em Roma, os Jogos de Stoke Mandeville tornam-se Jogos Paralímpicos.

Em 1969, mais um marco desse desenvolvimento, foi a verba disponibilizada do Serviço Nacional de Saúde britânico (National Health Service, NHS) para a construção de um ginásio de esportes indoor (Stoke Mandeville Stadium) que foi o primeiro local esportivo específico para pessoas com deficiência do mundo o qual abordarei mais à frente no texto.

O hospital na atualidade

O hospital é horizontal e há 3 alas de internação que eu não visitei. Os pacientes internos podem ficar de 4 semanas a 6 meses, dependendo do caso. Após receber alta, retornam em consultas como paciente ambulatorial.

Ao passar pelos locais do hospital, vi um ginásio direcionado à Terapia Ocupacional (“Occupational Therapy”) o qual não entrei. Nesse local, dentre outras intervenções, realizam orientações em relação às cadeiras motorizadas.

O outro local é um ginásio (“Gym”) que ficam os Fisioterapeutas e Sports Therapists que realizam exercícios nesse ginásio de fortalecimento, ortostatismo no aparelho stand table, caminhada na esteira ou treino de marcha. Além de outros recursos como esteira com suporte do peso corporal, jogos eletrônicos, exercícios de suspensão de membros superiores (gaiola com várias opções de adaptação). No fundo da sala tem várias cadeiras de rodas e um terapeuta ocupacional que é cadeirante quem é responsável por essa área. Ao lado tem uma outra sala com disponibilidade de andador e bengalas.

Curiosamente, o Sports Therapists é o profissional quem ensina o paradesporto. Essa área é uma especialização da fisioterapia na Inglaterra. Ao conversar com a profissional, ela informa que no curso não aprende sobre o paradesporto, sendo esse conhecimento adquirido fazendo cursos e contatos com treinadores. Esse profissional faz a apresentação das modalidades aos pacientes e intermedia o contato dos pacientes com os treinadores e equipes. É ele quem faz a mediação para a inserção no paradesporto. Uma dúvida minha foi quanto à prescrição de cadeira esportiva e a profissional informou que não é realizado, sendo o próprio paciente junto aos fabricantes que verifica o melhor posicionamento. A profissional relatou que o governo britânico não fornece cadeira esportiva, apenas a cadeira de rodas de uso diário.

Stoke Mandeville Stadium

Após sair do hospital de Stoke Mandeville, fui caminhando pela rua externa e durante poucos minutos chego ao ginásio chamado Stoke Mandeville Stadium. De início já há uma placa bastante emocionante: “Stoke Mandeville Stadium, Guttman Centre, Birthplace of the Paralympics”, ou seja, o local da origem das Paralímpiadas. E ainda há uma homenagem ao Dr. Guttman colocando seu nome no local e também na rodovia que dá acesso ao centro treinamento.

Frase do Dr. Guttman na entrada do Stoke Mandeville Stadium

Ao caminhar pelo corredor de entrada do ginásio, uma nova emoção surge ao ler a frase do Dr. Guttman com sua foto embaixo: “Se eu já fiz uma coisa boa em minha carreira médica, foi introduzir o esporte na reabilitação de pessoas com deficiência”.

Ao passar por esse primeiro corredor, há uma recepção que permite acesso à direita do ginásio onde há uma academia com aparelhos diversos para uso da comunidade, não somente deficientes. Há alguns aparelhos que permitem a execução de treino aeróbico para membros superiores.

Ao lado da academia, é possível ver um grande espaço da quadra. Lá acontece as atividades esportivas do hospital que se deslocam para o ginásio e também da própria comunidade de Stoke Mandeville. Inclusive uma das equipes que utiliza o local é o Stoke Mandeville Maulers que é um time de rugby em cadeira de rodas. Infelizmente, não consegui acompanhar o treino deles pois, conforme a foto abaixo, o piso da quadra estava em reforma.

Aparelho de treino aeróbico para membros superiores
Quadra com piso em reforma

Ao entrar no Stoke Mandeville Stadium, à esquerda, encontra-se o Centro Nacional do Patrimônio Paralímpico (do inglês, National Paralympic Heritage Centre). Esse local também é marcante pois apesar de ser apenas um pequeno cômodo, apresenta vários detalhes desde as vestimentas usadas durante os primeiros jogos, como as medalhas, os exercícios de treinamento na origem dos jogos e a primeira cadeira de rodas utilizada nas competições.

Ao entrar no Stoke Mandeville Stadium, à esquerda, encontra-se o Centro Nacional do Patrimônio Paralímpico (do inglês, National Paralympic Heritage Centre). Esse local também é marcante pois apesar de ser apenas um pequeno cômodo, apresenta vários detalhes desde as vestimentas usadas durante os primeiros jogos, como as medalhas, os exercícios de treinamento na origem dos jogos e a primeira cadeira de rodas utilizada nas competições.

Entrada do Centro Nacional do Patrimônio Paralímpico (do inglês, National Paralympic Heritage Centre

Quanto à cadeira de rodas, há uma história curiosa. O Dr. Guttman iniciou os esportes com cadeira de rodas de uso diário. Ele preferia, inicialmente, focar no desenvolvimento dos pacientes se adaptando nas cadeiras do cotidiano do que no desenvolvimento delas. Dessa forma, Dr. Guttman as inspecionava em busca de modificações e adaptações que não pudessem competir. O curioso que isso não impediu que os competidores fizessem suas próprias adaptações. Por exemplo, modificavam os assentos para abaixar o centro de gravidade da cadeira, alegando que elas eram daquela forma pois estavam antigas e desgastadas. Conforme o interesse nos esportes paralímpicos crescia, inovadores de todo o mundo começaram a transformar suas cadeiras de rodas em cadeiras esportivas específicas para o propósito, como as que vemos hoje.

A primeira cadeira de rodas utilizada nos Jogos de Stoke Mandeville

Após conhecer o primeiro piso, utilizo o elevador para chegar ao segundo andar, onde encontro uma sala ampla para aulas de ginástica ou dança. Ao lado dela, há a sede administrativa da Wheel Power. Lá pude entrar e conversar com alguns membros dessa organização, dentre eles, o chefe executivo chamado Martin McElhaton. Ele participou do programa de reabilitação de Stoke Mandeville e dos jogos em 1984, jogando basquete em cadeira de rodas. Depois migrou para o tênis em cadeira de rodas, atuando em várias frentes de desenvolvimento do paradesporto, inclusive tendo sido presidente por vários anos da Associação Internacional de Tênis em Cadeira de Rodas (do inglês, International Wheelchair Tennis Association, IWTA).

Martin comenta sobre o trabalho da Wheel Power em promover atividade física e esportiva para pessoas com deficiência física. A Wheel Power é uma organização beneficente que realiza cursos, eventos esportivos e participações em escolas com o paradesporto. Nas fotos abaixo mostro as diferentes atividades realizadas por essa organização como aulas de exercícios físico pela internet, treino de habilidade em cadeira de rodas, disponibilização de elásticos para treino de força e competições com caráter de iniciação.

Mural com vários atletas e cursos da Wheel Power

Conclusão

Foi uma experiência incrível e marcante em minha vida. Espero ter conseguido trazer em palavras e fotos um pouco do que passei nessa tarde em Stoke Mandeville. Gostaria de agradecer ao Mateus Campana por me dar dicas sobre o trajeto e as opções de deslocamento até lá e à ABRC pela oportunidade de dividir esse momento.

Referência

1.            Guttmann L. History of the national spinal injuries centre, Stoke Mandeville Hospital, Aylesbury. Spinal Cord 1967;5(3):115-26.